2025-03-11
IDOPRESS
Forças de segurança do governo sírio se reúnem em prédio público na província de Latakia — Foto: Omar HAJ KADOUR / AFP
GERADO EM: 10/03/2025 - 20:03
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Três meses depois da meteórica queda do regime de Bashar al-Assad e da chegada ao poder de um novo governo na Síria,composto por antigos membros de grupos jihadistas,o país vive uma das mais graves ondas de violência das últimas semanas,marcada por denúncias de limpeza étnica cometida contra a minoria alauita,da qual Assad fazia parte.
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Considerados infieis por algumas escolas de pensamento islâmicas,os alauitas são a minoria mais conhecida dentre as muitas que compõem o tecido étnico e religioso da Síria,cada qual com suas próprias demandas,importância e papel na reconstrução do país árabe após mais de uma década de guerra e da queda de um regime ditatorial de meio século.
A minoria alauita,que corresponde a cerca de 10% da população atual da Síria,é um ramo do xiismo,tecnicamente dentro do Islã,mas com algumas práticas e ritos trazidos de outras religiões,como o cristianismo: seus integrantes celebram feriados islâmicos,como o Eid al-Ghadir,pelo qual,segundo a tradição xiita,o profeta Maomé escolheu o imã Ali como seu sucessor,e também o Natal cristão e o Ano Novo persa,uma herança do zoroastrismo.
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Desde seu surgimento no que hoje é conhecido como Síria,entre os séculos IX e X,eles se concentraram na região de Latakia,onde está concentrada a ofensiva das forças do novo governo e de onde vem a maior parte das denúncias de limpeza étnica,e em áreas da Turquia e Líbano.
Durante a maior parte de sua história,foram alvo de perseguição,em especial por parte dos otomanos,com massacres recorrentes — o nome “alauita” foi adotado oficialmente para designar a minoria apenas no início do século XX,quando o Império Otomano estava em ruínas e os franceses passaram a administrar a Síria.
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Com o mandato sobre a Síria e o Líbano nas mãos de Paris,por determinação da então Liga das Nações,foi criado um pequeno Estado alauita semi-autônomo na região de Latakia,onde não havia a mesma resistência aos franceses vista em regiões de maioria sunita. Eles se juntaram às Forças Armadas como uma forma de subir na escala social,e após a saída dos franceses,em 1946,começaram a ocupar cada vez mais espaço em cargos públicos e no comando militar.
O golpe liderado por Hafez al-Assad,em 1971,estabelecendo uma ditadura passada a seu filho,Bashar,e que só foi derrubada no fim do ano passado,foi,como apontou o autor alauita Adnan Younes,em artigo de 2021 para a revista New Lines,um choque de identidade para a minoria: ao invés de serem os perseguidos,agora estavam no poder e eram a principal força política do país árabe.
No comando do aparato repressivo,Hafez al-Assad não teve receio ao usar a violência contra seus rivais,especialmente grupos islâmicos. A Irmandade Muçulmana,acusada de atacar alauitas com frequência,foi alvo de uma violenta operação em 1982,na cidade de Hama,que teria deixado,segundo a Anistia Internacional,até 25 mil mortos.
Seu filho,aprimorou o aparato de segurança após a morte de Hafez,e conseguiu se manter no poder ao longo dos mais de 10 anos de guerra,contando com o apoio russo,mas não foi capaz de suportar um levante liderado pelos seus inimigos que em dias o derrubou do poder.
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Além dos alauitas,outras minorias devem ser tão ou até mais cruciais na definição do futuro do país.
Citados com frequência nos últimos anos,especialmente por seu papel na luta contra o grupo terrorista Estado Islâmico,os curdos compõem cerca de 10% da população,e,assim como os alauitas,habitam a Síria e países vizinhos,como Iraque,Irã e Turquia,há muitos séculos. Com um idioma próprio,distinto do árabe e do turco,e de maioria sunita,foram perseguidos por vários regimes,e não raro forçados a esconder sua identidade cultural.
Após a independência da Síria,oficiais com laços com a comunidade curda participaram de alguns dos golpes militares que ocorreram em série,mas acabaram perdendo poder com a onda nacionalista árabe que varreu o Oriente Médio no final da década de 1950. Com Hafez al-Assad ao poder,entraram na mira do aparato de repressão do Estado — milhares foram presos e torturados,e o regime tentou removê-los à força de suas terras,próximas à fronteira com a Turquia.
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Com Bashar al-Assad,a repressão se agravou,mas a guerra civil,iniciada em 2011,serviu como uma oportunidade para forças curdas controlarem de fato uma porção do território sírio. Ao mesmo tempo,as milícias locais passaram a enfrentar,além do Exército sírio,milícias islâmicas do Estado Islâmico,além da Turquia,que vê o movimento de emancipação curda como uma ameaça existencial.
Nesta segunda-feira,a principal milícia curda,as Forças de Defesa da Síria,apoiadas pelos EUA,firmou um acordo com as novas autoridades em Damasco para se integrarem às Forças Armadas sírias até o fim do ano,com o compromisso de ajudar a combater os apoiadores do antigo regime de Bashar al-Assad.
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Para os cristãos,que hoje são cerca de 2% dos sírios — antes da guerra eram 10% —,os tempos também são de incerteza. Sob Assad,eles tinham algum grau de proteção,mas pouca voz política. A Constituição,por exemplo,estabelecia que apenas muçulmanos podiam comandar o país,e alguns de seus membros,como George Sabra,chefe do Conselho Nacional Sírio,encabeçaram a oposição ao regime.
Apesar das promessas de liberdade religiosa e de que todos terão uma voz no novo governo,poucos cristãos sírios que foram para o exterior,a maioria ligada a denominações ortodoxas,parece disposta a retornar imediatamente. Especialmente pela presença de antigos jihadistas no novo governo,que há pouco tempo pregavam abertamente a execução de seguidores do cristianismo.
— Há alguma preocupação,mas as pessoas ainda estão indo para a universidade em Homs. Está tudo bem — disse ao jornal Guardian Hind Kabawat,ativista síria que vive nos EUA. — Estamos em boa forma até agora,mas sempre no caso de um governo de transição,precisamos fazer perguntas,para ter uma eleição adequada.
Apesar do certo grau de proteção sob Assad,os drusos,que correspondem a cerca de 3% da população síria,e que têm suas raízes no Islã,já vinham perdendo a paciência com o regime deposto há alguns anos,e elevado o tom das críticas e protestos nos últimos anos. O aumento da violência protagonizada por grupos extremistas,assim como a prisão de lideranças locais,fez com que muitos deixassem o país e se juntassem à oposição.
Nas Colinas do Golã,ocupadas por Israel e onde há uma comunidade drusa,trouxe a esperança a alguns de que,em breve,seria possível tomar um café em Damasco,mas a presença militar israelense na fronteira e em um trecho do território sírio sugere que esse será um sonho que ficará para um futuro ainda incerto.